O Cosmo _ textos
Até onde os olhos alcançam
Shannon Botelho
Até onde os olhos alcançam
“Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com súbito espanto da primeira vez?”
Mário Quintana
O universo exerce, desde tempos imemoriais, um curioso fascínio sobre o ser humano. Ao longo do tempo, no decorrer daquilo que chamamos História, citações e eventos relacionados ao espaço formularam um nexo muito peculiar entre o humano e a extensão incomensurável do cosmos. Há referências rupestres à observação dos astros luminosos no céu; os egípcios acreditavam que para adentrar o mundo espiritual era necessário atravessar a Lua com um barco; gregos e romanos basearam suas mitologias e ciências sob este infinito celeste, o mesmo que abriga as incontáveis estrelas que definem a extensão da descendência de Abraão.
Não precisamos ir tão longe, nem recorrer a linearidade temporal instruída pela lógica eurocêntrica. Neste rincão das Américas, há muitos séculos os povos originários reconhecem nas marés a dança da Lua no céu. Através dos agrupamento de estrelas por eles mesmos definidos, os povos indígenas afirmam que tudo que existe na Terra possui um rebatimento no céu em forma de constelação. Mimetizando este conhecimento e valendo-se de um processo de colonização nas cidades da América Espanhola os povoados foram estruturados a partir de uma praça central e de duas linhas traçadas – norte e sul, leste e oeste –, reproduzindo na terra uma ordem cósmica. Neste contexto foi ratificada a ilusão do antropocentrismo, onde o Homem é o senhor do curso das coisas e dos fatos – manipulando culturas e fabricando memórias reais ou alteradas –.
Arriscaria dizer que o universo talvez seja para nós estranhamente atraente por compor a antítese do que imaginamos conhecer. Em outras palavras, o universo é a delimitação daquilo que somos por oposição, um contexto externo que define e produz miragens aos que estão inscritos no dentro. A ciência moderna avançou muito no estudo e descobrimento do universo. Hoje sabemos a quantos anos-luz estão situados constelações e sistemas, ainda que até o momento atual seja humanamente impossível chegar até lá. Não seria desproporcional dizer que o universo é o nosso depositório de sonhos e esperanças – seja materialmente ou como destino de nossas orações –. Mas importa refletir que todas essas percepções do céu, estrelas e demais corpos celestes careceu da escuridão da noite que teve, após sua conquista, desbotadas as luzes e a poética relação que levou Van Gogh a pintar as célebres Noite Estreladas.
Em Até onde os olhos alcançam, Ursula Tautz entrecruza todos estas questões. Focaliza a amplidão em um posicionamento central, que consiste em elaborar como o distanciamento do ser humano contemporâneo em sua relação com o cosmos conforma um modo de alienação da vida, da beleza e de nós mesmos. A partir de cinco premissas a artista nos convida a olhar, ainda que simbolicamente, para o céu apresentado. A primeira delas é portadora de uma afirmação de Carl Sagan, de que “somos feitos de pó de estrelas”, das substâncias que há bilhões de anos estavam no interior de astros luminosos. A segunda premissa, partilha da teoria quântica que pressupõe sermos entrelaçados desde a eternidade a milhões de átomos do universo. A terceira premissa diz respeito ao tempo, uma vez que é possível contar o tempo a partir de um céu estrelado – como um mapa celeste que marca com exatidão o momento que vivemos e nunca mais se repetirá –. O quarto pressuposto, ainda temporal, afirma que observar o céu é olhar o passado, uma vez que a luz das estrelas tão somente oferece a sua memória, o trajeto do momento de sua explosão até o agora. Por último, a quinta premissa, originada de uma reflexão de Bianca Madruga, considera que observar o céu seja um guia para o futuro, numa leitura do desejo – que vem de DESIDERARE, cujo sentido original seria “esperar pelo que as estrelas trarão” –.
O circuito expositivo está estruturado a partir das quatro obras, que Ursula produziu especialmente para o espaço do Memorial Getúlio Vargas. Entre elas, traçados de fitas pretas-antiderrapantes mimetizam o singelo brilho do espaço. Em “Formoso céu, risonho e límpido”, está apresentada a constelação da bandeira do Brasil que é retratada invertida, por força da lei, como se vista de fora da esfera celeste. Na obra, em sua posição correta, o espectador é convidado a rever, através de um calendário celestial todos os acontecimentos históricos do País de dentro para fora, luminárias com os mapas celestes corretos acendem e apagam relembrando desses acontecimentos.
Na obra “Nosso céu tem mais estrelas”, estão dispostas conjuntamente a uma prataria limpa, 8 esponjas abrasivas usadas por 8h para ariar pratarias, 16 esponjas abrasivas utilizadas por 16h para ariar pratarias, 24 esponjas abrasivas usadas para ariar por 24h pratarias e esponjas não utilizadas. O conjunto das esponjas formam juntas a constelação de virgem – a única que se refere à uma imagem feminina -. Elas remontam o dia em que as leis trabalhistas femininas foram promulgadas.
“Ruído de fundo”, é uma instalação localizada no núcleo do espaço expositivo, composta de redomas de vidro com grafite e carvão sobre vidros e espelhos quebrados. Ao centro um pequeno motor de microondas gira com uma vara de vidro e guizos presos à um tubo, batendo levemente nas redomas e gerando um suave ruído, duas lâmpadas incandescentes repousam no chão – ruído de fundo refere-se ao som produzido pelo big bang que até hoje circula pelo universo.
Por fim, “The clock is started”. Uma instalação, com uma cadeira tombada e tvs de tubo, das quais algumas só produzem listras e a que está em funcionamento reproduz o som da Nasa no programa Mercury-Redstone, anunciando que o relógio está ligado e o tempo começa a ser contado. O áudio relembra a missão espacial que pretendia estudar a resistência humana no ambiente cósmico e que perdeu sua última aeronave mergulhada no oceano.
O conjunto das obras forma uma experiência una, uma proposição reflexiva que atravessa razão, emoção e memória. Como dissemos anteriormente, o universo, por constituir-se justamente como antítese daquilo que julgamos conhecer, fica aqui apresentado como um convite para fixarmos nossa atenção “até onde os olhos alcançam”. Percebendo-nos exatamente de onde estamos, quem somos e para que somos.
Shannon Botelho
2023
A incontrolável
Luisa Ordoñez e Ursula Tautz poema escrito durante residência artística no deserto do Atacama
Onde o sagrado e o profano coexistem nas jovens paisagens?
Deus e o diabo na Terra do Sol.
Carros Vermelhos, placas solares, fotovoltaicas, moinhos de vento.
Vento frio, terra árida rasgam a face
O manto das estrelas, da imensidão, da secura.
Louvado seja o rio que corre por entre as nebulosas.
Poeira cósmica nos telhados das catedrais.
Terra que se abre, terra faminta, terra loa.
No crepúsculo dos vulcões as 31 pinturas de Rouen.
Os gigantes telescópios espreitam no topo da colina,
aguardando que o sol se ponha para abrir seus imensos olhos
e mergulhar em paisagens inimagináveis
E escalando a montanha alcançamos os ventos,
que anunciando o início das jornadas por tempos interestelares,
uivam em velocidades galopantes.
E assim conhecemos seus mestres, magos cientistas
que nos contam de suas fábulas galácticas.
Homens que com suas lanternas lasers criam estrelas artificiais,
na tentativa de medir anos luz para guardar o tempo em sua ausência.
Os buracos negros a devorar filhos de Saturno.
El firmamento es la obsesión;
el atardecer, el momento más anhelado.
Los telescopios abren sus compuertas
durante el crepúsculo y la tripulación
de la nave se apresura a hacerla funcionar.
Se acerca la oscuridad, es hora de viajar
en el tiempo.
La liturgia del
telescopio,
el ritual del crepúsculo,
la solemne curiosidade
O Homem é o único animal que olha o céu.
Una escalera solitaria
que no lleva a ninguna parte
me hace pensar que alcanzar el cielo
sigue siendo, aún para las inmensas máquinas
de capturar estrellas, una paradójica imposibilidad.
A curiosidade que não finda
E voltamos à Terra.
ArtRio 2022
Juliana Monachesi
Um tempo breve. Alguns pares de semana. Foi o que me coube para entrar em contato, ver e falar com uma pequena constelação de artistas mulheres e seus fabulosos trabalhos. O resultado desse encontro você, leitor, está vendo agora. Aqui, talvez no breve tempo que poderá dedicar a essa exposição. Não se aflija. Dá tempo. Tempo até sobra, você verá. Respire fundo, avance mais alguns passos. Fique à vontade. Enquanto você percorre o espaço, vou contar o que descobri. Deixe-me começar fazendo as apresentações: da esquerda para a direita você encontra obras de Ana, Ursula, e Isis. Mas se estiver visitando a feira no final de semana, o encontro vai ser com os trabalhos de Lilian, Ursula, e Gabriela, nessa ordem. Caso algo tenha mudado nesse ínterim, Vanessa ou Flávio vão te trazer informações atualizadíssimas no exato momento em que você lê estas exatas palavras neste papel, não se preocupe. Você já viu muitas exposições de arte, imagino. Então, ao percorrer nossa pequena mostra coletiva, em cerca de 20 passos, ou 15, a depender do seu ritmo, penso que vai intuir imediatamente que os temas e inquietações mobilizados nas telas, fotografias, esculturas e peças instalativas que tem diante de si evocam tempos ancestrais. Você está no caminho certo. Escrevi há pouco que te contaria das minhas descobertas, lembra? Porque antes de Vanessa me convidar para organizar essa mostra, não conhecia ainda Ana, Ursula, Isis, Lilian, e Gabriela. E talvez você seja da mesma opinião que eu, de que cada artista é um mundo inteiro. No limite, cada obra de cada artista é um mundo. Não vamos resolver nada nesse curto espaço de tempo nem solucionar maiores enigmas, nós sabemos. Assim como compartilhamos desse indizível e desse insondável que habita as obras de arte, sim? A partir dessas limitações é que posso contar essas histórias, sabendo que estamos na mesma página. Está vendo os dois retratos na parede da esquerda? Esses objetos ovais, um feito de caquinhos de cerâmica e concreto, outro de cimento e areia? São retratos da casa de infância que Ana Hortides construiu para trazer para o primeiro plano o espaço que costuma residir invisível e inalcançável por trás de todos os retratos: a história de qualquer sujeito representado numa obra de arte traz a reboque uma casa, uma infância, memórias de todos os tempos que uma história contém. Na parede frontal da exposição, esse desenho espacializado sobre diversas folhas de papel, espalhado na parede, emaranhado por trilhas de grafite e fitas antiderrapantes que você vê também fala do tempo imemorial: o tempo da datação de carbono, investigação que perpassa as obras recentes de Ursula Tautz, evocando as memórias do mundo e as tramas microscópicas que formam tudo o que vive e pulsa. O grafite também está depositado nas duas telas da artista, logo em seguida ao desenho: carbono que Ursula desbasta, deixando entrever as constelações ao fundo. Do cosmo infinito, você salta ao microcosmo desses interiores expostos na parede à direita. São espaços que o olhar de Isis Gasparini perscruta dentro de museus: um detalhe do mobiliário, um fragmento de jardim entrevisto pela janela, um motivo que capta a sua atenção em uma pintura. Camadas e camadas de tempo decantando sob o olhar dos visitantes, como o seu mesmo agora, enquanto tenta desvendar o que pode ter acontecido com as Catedrais de Rouen que Claude Monet retratou em 1894 nessas cinco versões diminutas que Isis dispõe uma ao lado da outra. Dou uma dica: cada uma sofreu a ação da luz do Sol por um período de tempo diferente. Cada obra da artista contém tempo e luz em diferentes proporções. Agora, se você está visitando a exposição em um dia diferente, preciso contar outras duas histórias: primeiro, voltemos a olhar a parede da esquerda. As pinturas que você vê são memórias da artista Lilian Camelli plasmadas em óleo sobre tela. Os interiores domésticos evocam lugares do passado, alguns vivenciados, outros recriados mais com a imaginação do que propriamente com a memória. Ou seria a memória sempre uma reinvenção? Lembra, no início do texto, quando mencionei as fábulas? Há muito de ficção no conjunto de todos os trabalhos reunidos aqui (seja qual for o dia da sua visita), porque a matéria do tempo é a invenção. À direita, você pode observar esse grid que se desmancha e se alonga composto por pequenas pinturas, de Gabriela Sacchetto. Convidam a se aproximar. Pode chegar bem perto, sem cerimônia. Percebe como cada uma é um mundo? O trabalho pictórico com a tinta a óleo de tons rebaixados sobre madeira imprime esse aspecto de um tempo imemorial, não acha? Seja um pequeno objeto que a artista escolhe retratar, seja uma imensidão de paisagem, tudo cabe nessa oscilação entre um passado difícil de localizar com precisão e a concretude material da presença desse corpo-obra, tudo cabe nessa instantânea viagem no tempo. Não falei que dava (e até sobrava) tempo? A propósito, esqueci de me apresentar! Sou esse serzinho que espia por debaixo do tapete vermelhão. Ou, caso hoje seja sábado, sou esse caminhãozinho basculante no deserto de areia da pequena pintura do canto. Obrigado pela visita.
Theo Monteiro
Estamos diante de artistas que pensam o Cosmos. Por Cosmos, pode-se entender aquilo que nos rodeia, que nos conforma, que estrutura a tudo e a todos. Trata-se de um termo amplo, que pode ser utilizado tanto para o estudo de corpos celestiais e estelares, quanto para o entendimento de dinâmicas sociais e políticas. Como em uma matrioska, o cosmos é formado por diferentes escalas, e cabe a cada uma dessas artistas entendê-lo por meio de suas distintas dimensões.
……
Assim, pelo ar, pelo domus e pelo lítico, essas artistas se detém por diferentes escalas daquilo que nos compõe e que, por enquanto, habitamos. Não oferecem respostas conclusivas, mas apontam caminhos para uma percepção sensível do universo.
Theo Monteiro
Ainda que nos dias atuais a cartografia e atitude diretamente ligada a ela (o ato de mapear) tenham ganhado contornos exclusivamente científicos e utilitários, em tempos pretéritos, ela trazia também algo a respeito de nós mesmos. Territórios inexplorados e desconhecidos eram preenchidos por seres monstruosos, lendas misteriosas e uma profusão de fantasmas e incertezas referentes a nossa incapacidade de compreender o que nos cerca. Havia, num instrumento utilitário, espaço para que a imaginação fluísse solta.
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Longe da esfera da pintura, está Ursula Tautz. Seus instrumentos, diferentemente das demais, não são os pincéis, mas sim aqueles da ciência: tubos de ensaio, balões volumétricos, provetas e outros, que recheia com materiais como cabos de aço, carvão, grafite, areia, cobre e outros tantos elementos já vasculhados e explorados pelas ciências ao longo dos séculos. Seu mapeamento, portanto, se volta para forças naturais, lançando-se assim na missão de (re) poetizar a ciência.
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Se no âmbito científico o ato de mapear foi completamente separado do sonho e do subjetivo, no âmbito artístico os dois ainda coexistem e produzem resultados interessantes. A presente seleção de artistas traz justamente cinco delas cujas pesquisas, ainda que por diferentes caminhos, acabam por oferecer interessantes mapeamentos.
Entre o concreto e o etére
Bruna Costa
Amílcar de Castro Ana Hortides Ana Sant’anna Antonio Bandeira Arthur Pereira Carolina Colichio Gabriela Sacchetto Julia da Mota Julia Pereira Lais Myrrha Lilian Camelli Milton Dacosta Mari Ra Ursula Tautz
O projeto do stand partiu do pensamento sobre as “dobras da realidade”; artistas que possuem um dado de realidade que chamamos concreta, seja no material, seja na imagem, mas também de suspensão da mesma realidade, ou de diluição da existência material. Suas obras eventualmente corroboram para a possibilidade de sonhar, de rememorar, ou de ficcionalizar a visualidade. É o encontro da água mole com a pedra dura, ou da invenção com o estatuto da verdade. Abstrato e figurativo já não dão conta de classificar o contemporâneo, que inventa trazendo fragmentos do cotidiano. É algo entre a gravidade que nos prende ao chão e a distância que nos faz voar no céu.
Em face de artistas concretos, nos deparamos com a dobra literal no espaço-tempo de Amílcar de Castro, e do retorno à figuração com a magia do anjo de Milton Dacosta, enlevada pela linguagem geométrica que marcou a nossa história da arte. Antonio Bandeira rebate esta concretude com o modernismo descentralizado, mais lírico, embora ritmado. Já no terreno da figuração sintética, econômica, Arthur Pereira e Gabriela Sacchetto se aproximam não só no material da madeira, mas nas frestas: ele na margem do sistema artístico, e ela na matéria-prima feita de restos de madeira de demolição. Ursula Tautz incorpora questões do tempo e da materialidade da vida, através do carbono, elemento químico mais abundante da natureza; Ana Sant’Anna produz desenhos leves e etéreos no branco sobre branco, em linhas que parecem passear de um papel a outro; Julia Pereira, por outro lado, traz a força e o peso das pinceladas e da materialidade da pintura; Julia da Mota traz a paisagem em tons azuis e violáceos, cores que vibram numa velocidade muito lenta e, assim, traduzem a sensação do infinito dos mares e do céu; já o mergulho de Mari Ra se dá pela pesquisa cromática e suas quebras; a paisagem marítima também aparece em Carolina Colichio, encrustada na dureza do concreto, evocando o encontro do delicado e da força, mas lembrando que o concreto foi um dia líquido e, portanto, plástico; concreto este que aparece em destroços na paisagem de Lais Myrrha como memória e história; e em Ana Hortides, como lembrança das construções suburbanas, com caquinhos de cerâmica e cortinas bordadas; já na tela de Lilian Camelli, essas cortinas ventam como um sonho estranho, mas familiar.
16/03/23