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Sinos – o som _ textos

O Som do Tempo ou tudo que se dá a ouvir

Ivair Reinaldim

Logo de início, cabe um alerta: este texto foi escrito previamente à montagem e abertura da exposição O som do tempo. As palavras que se seguem partem de um exercício de visualização imaginativa – antes da instalação ganhar corporeidade no mundo –, por meio de diálogos com a artista e do contato com inúmeros fragmentos que acompanharam a pesquisa que deu origem à obra: textos, relatos, fotografias, croquis, trechos de vídeos. Assim, a experiência direta, esta que acontece a partir da inauguração da mostra, só me será possível depois que este texto estiver finalizado. Ou seja, assumo o desafio de apresentar um trabalho a partir daquilo que ele possivelmente virá a ser, assinalando alguns de seus aspectos estruturais e/ou conceituais. Não objetivo esgotá-los e muito menos endossar uma abordagem analítica conclusiva, uma vez que toda obra possui abertura e, frente à complexidade inerente a esta instalação, a experiência direta – tanto a minha, quanto a de todas as pessoas que a presenciarem –, evidenciará novas camadas de significação e interpretação, não necessariamente previstas em um projeto. O som do tempo parte de uma ampla investigação de Ursula Tautz, desde aquela que a artista realiza em busca das origens de sua família à intenção de reunir fragmentos diversos, recolhidos ao longo de um período de mais de sete anos, acerca do imaginário relacionado aos sinos. Soma-se a isto, entre a proposta inicial e a sua concretização, a pausa imposta pela pandemia ainda em curso – condição que por si só, para a artista e para todos nós, recoloca uma série de indagações e perspectivas –, prolongando ainda mais seu tempo de maturação. Como um primeiro apontamento, ao investigar “som” e “tempo”, colocando esses dois termos em relação, ressalto que a artista não pretendeu partir da propriedade física dos sons de se propagarem no tempo (e no espaço), mas propor uma experiência temporal como percepção subjetiva, a partir do registro sonoro-visual. Ou melhor, uma experiência de cruzamento entre diferentes temporalidades: o tempo cronológico e o tempo não cronológico, o tempo histórico e o tempo da memória, o tempo compartilhado e o tempo apreendido subjetivamente. Partindo dos sinos, podemos pensar em como suas diferentes sonoridades marcaram acontecimentos no passado – nascimentos, velórios, festas religiosas, pestes, rendições e o fim de guerras – e são ainda recorrentes em geografias e culturas diversas. Isto em um passado longínquo, em um tempo não tão distante e ainda na atualidade, seja em pequenas cidades ou no centro do Rio de Janeiro, quando os sinos das igrejas próximas ao Paço Imperial marcam a constante passagem das horas, mas também o Ângelus na liturgia do catolicismo. Múltiplas camadas de tempos, descontinuidades e recorrências. Outra observação se refere à instalação como uma montagem de fragmentos aparentemente desconexos, seja por aproximação, justaposição, sobreposição. Nesse procedimento, diferentes materialidades e linguagens se coadunam em um propósito mais ou menos comum, produzindo uma experiência de suspensão, no tempo e no espaço, mas que é interrompida em diferentes momentos pelos indícios da realidade advindos do lugar que a obra ocupa: a arquitetura do Paço Imperial, os ruídos do tráfego da Rua Primeiro de Março, ao lado, e o badalar dos sinos das igrejas no centro do Rio de Janeiro. Entre esses fragmentos, podemos listar os inúmeros badalos soltos, distribuídos pelo espaço expositivo; a pirâmide de terra negra e areia dourada, que soterra parte de uma cadeira; o vídeo que registra a viagem que a mãe da artista fez, há mais de 20 anos atrás, à antiga cidade alemã Ullersdorf an der Biele (incorporada ao território polonês, desde o final da Segunda Guerra, com o nome de Ołdrzychowice Kłodzkie); o registro recente de um estábulo na Polônia, onde andorinhas fizeram seus ninhos; trechos do longa metragem No Paiz das Amazonas (1921), de Silvino Santos, instrumento tanto de exaltação política das elites quanto da exploração da natureza e da mão de obra na Amazônia brasileira; a música Such Sweet Thunder (2015), do artista e compositor Samson Young, que registra o som de sinos em diferentes partes do mundo; a presença da luz direcionada, em contraste com a luz projetada pelos equipamentos e a penumbra no espaço expositivo. Quando todos esses elementos são acionados simultaneamente, configuram um regime de ficção, como se diante de nossos corpos houvesse um filme desmembrado no espaço e no tempo, que só pode ser apreendido pelos deslocamentos – físicos, mentais, imaginativos – de quem pretende “assisti-lo”.

Por fim, entre registros familiares da artista, que se reportam à avó alemã, e registros ficcionais, que simbolizam indiretamente a existência da avó manauara, a quem não conheceu, entre a materialidade dos sinos e os registros dos sons por eles produzidos, entre índices de poder e de violências diversas, a instalação produz torções entre memórias pessoais e coletivas, vestígios da passagem do tempo e a persistência de imagens e histórias, a visão romantizada e a ideologia do progresso, o som do sagrado e o soterramento do aqui-agora. Confundem-se, assim, registro e ficção, testemunho e imaginário. Talvez a vivência da instalação possa dar a vislumbrar uma percepção contrária: a da dificuldade enfrentada na experiência de escrita deste texto, de narrar aquilo que ainda não existe concretamente no mundo. Como vislumbrar uma obra que se dobra sobre si mesma, que produz uma suspensão por meio do estímulo simultâneo dos sentidos, mas que ao mesmo tempo se abre para algo literalmente fora dela, quando esta suspensão vez ou outra é dissolvida por aquilo que nos retorna à realidade cotidiana? Entre imaginar e vivenciar, há uma distância. Eu ousaria dizer que é disto que trata a artista. Quando os sinos dobram, o que nos sobra é a consciência de nossa própria condição humana.


O Som do Tempo ou tudo que se dá a ouvir

Luciana Muniz

Ó sino da minha aldeia,

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.

 

(Ó sino da minha aldeia – Fernando Pessoa)

SINO. Sua etimologia deriva do latim signus, sinal, marca, indicação, símbolo. Desde a Idade Média, os sinos estão presentes no mundo ocidental, na marcação dos ritos católicos. Suas origens remontam às necessidades primárias dos seres humanos: a comunicação através do som.         

Nos usos rituais, a origem do instrumento recua ao ano II a.C., no Egito Antigo. Seu formato de campânula circular, tal qual o conhecemos, foi criado na China no século V a.C., quando foi sintetizada a sua fórmula básica, quatro partes de cobre pra uma de estanho. Nas práticas budistas e taoistas os sinos são instrumentos essenciais nos rituais de meditação e devoção, além de serem objetos de estudo na teoria musical, devido a sua precisão e amplitude sonora.

Na Idade do Ferro da África Meridional (2.000 a.C.) sinos foram encontrados nos diversos reinos da África do Sul, Zimbabué e Zâmbia, os instrumentos eram utilizados para anunciar a chegada dos reis. No candomblé, originário das tradições iorubás, o adjá é uma espécie de sineta de metal para uso exclusivo dos sacerdotes e  têm como função evocar os orixás e provocar o transe.

A religião católica elegeu o sino como dispositivo central para o exercício de seu controle entre o sagrado e o profano. A regra beneditina (529-543) e a difusão do monasticismo, instaurou   normas para os atos religiosos, ordenando o cotidiano a partir dos toques do sino.

O sino é considerado uma das primeiras grandes inovações tecnológicas. Seus toques, durante séculos, foram  predominantes na marcação das horas e seus intervalos, ditando o fazer cotidiano, ordenando a mobilidade urbana, o tempo externo da vida coletiva e o tempo interno do recolhimento domiciliar. Nos usos profanos, durante as guerras e pandemias, os sinos indicavam o toque de recolher, avisavam sobre a chegada de tropas inimigas e bombardeios, e alardeavam incêndios e catástrofes. 

Em Portugal, a primeira referência da utilização do sino é do ano de 870. A produção de sinos na Península Ibérica, com forte presença de mestres sineiros espanhóis, se desenvolveu ao longo dos séculos XIV ao XVI. Nas tradições sineiras artesanais, a feitura do sino seguia um processo minucioso e pesado, devido às dimensões e volume do objeto e seus moldes. Até que o nascimento do sino ocorresse, o dispositivo permanecia enterrado por um tempo até esfriar, emergir da terra, ser polido e ornamentado, quando pronto, era içado para o campanário. 

Objeto enigmático, o sino é personificado a partir de um ritual de consagração, são “batizados” e nomeados, é o único utensílio autorizado pelo Vaticano a receber tal consagração.

O sino possui uma espacialidade monumental, seu som se propaga em ondas, em diversas direções, de natureza acústica complexa, o sino é projetado para os efeitos de concentração e difusão sonora ampla, reverberando sem cessar, até a sua última vibração.

Rio de Janeiro: entre sons e silenciamentos

 A transferência da Corte portuguesa e a instituição da nova sede monárquica no Rio de Janeiro em 1808, redefiniu o eixo do poder colonial e inseriu a cidade na crise geopolítica instaurada na Europa. Reinventar e reinaugurar um império no Brasil era a solução, a despeito de desacordos e interesses, a decisão extraordinária configurou um projeto de poder do qual somos herdeiros.

O Largo do Paço, atual Praça XV foi o palco escolhido para o espetáculo. Ladeado pela Capela Real, a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo e a Igreja de Santa Cruz dos Militares. A cidade colonial, suja e insalubre, foi alvo de projetos, reformas, desmontes e aterramentos, com o intuito de adequá-la a um processo civilizador particular.

Entre a violência e o controle, as festas da realeza e seus rituais de reafirmação do poder eram momentos de coesão forçada em um mundo fragmentado e deslocado, um mundo em exílio, tanto para a corte, como para os africanos escravizados. A Igreja era o centro unificador do tempo político com o tempo religioso. Desde o século XVI, os jesuítas instauraram um novo mundo para os povos indígenas, exilados de sua própria cultura, foram forçados a adotar a religião católica, obedecendo regras e ritos estrangeiros, desaparecendo em seu próprio território. No centro desta empresa, no movimento de imposição da cultura do branco europeu, um dispositivo se destacava, o sino: marcação  sonora ritmada, repetida e regular, com a função de acionar o tempo, a  atenção e a obediência, além de preparar os cinco sentidos para a liturgia. O sino era a interface entre o sagrado e o poder, no regime de verdade imposto pela religião católica e a monarquia, seu toque determinava quais os enunciados e comportamentos deveriam ser seguidos, por quanto tempo e em quais territórios.

Sacro e profano – usos do sino no Brasil

Durante muitos séculos, nas áreas rurais, os sinos foram os mediadores entre o céu, o tempo e os usos da terra. Elemento da paisagem arquitetônica e cultural, o sino é o personagem central de diversas lendas. Em tradições originadas na Idade Média, os toques dos sinos avisavam a chegada de tempestades, é comum lermos em seus corpos a inscrição fugo fulmina, ventos dissipo.

Santos católicos e entidades encantadas afro-brasileiras também são personagens de histórias e lendas com os sinos. Santa Ágata é considerada padroeira dos sineiros, devido ao formato de seus seios cortados, semelhantes às campânulas, após terem sidos arrancados a ferro; sinetas de metal, agitadas em nome Santa Bárbara, afastam os maus espíritos, ela é padroeira da metalurgia e é evocada contra raios e tempestades.

A herança dos tambores  africanos se faz sentir na rítmica  dos toques dos sinos, no  Brasil colônia, muitos sineiros eram escravos ou mestiços. Em Minas Gerais, o legado  da cultura de matriz africana está presente nos nomes dados às batidas dos sinos, barravento, batucada e repique de cabeça, toques correspondentes aos dos atabaques do candomblé.

Exu, o orixá da comunicação entre os mundos, silenciado e ressignificado pelo sincretismo, na Umbanda transfigura-se em Seu Tranca-Rua, o qual é convocado pelo ponto onde o sino demarca o tempo encantado: O sino da Igrejinha faz Belém-Blém-Blóm/ Deu meia-noite, o galo já cantou/Seu Tranca-Rua que é dono da gira/ Ô corre gira, pai Ogum mandou… A apropriação do sino pelas religiões afro-brasileiras, subverte seus usos consagrados na invocação de uma entidade da rua. Um tempo alternativo é firmado sob o comando de Ogum, orixá da guerra e do ferro, com o qual   podemos estabelecer a correspondência entre seus atributos e o sino.

No tempo linear do catolicismo, outro momento de suspensão ocorre na Semana Santa, quando os sinos silenciam para lembrar o luto pelo Cristo morto, o tempo e o ritmo da vida cessam até o domingo, quando os sinos repicam festivos pela Ressurreição.

Ao longo da história, entre usos e significados diversos, o sino permanece um enigma. Usados como marcadores cronológicos, indicadores de intervalos da memória e do silêncio, os sinos eternizam os sons do tempo, do espaço-tempo coletivo.

Referências bibliográficas:

BAUDOT, Jules. Les cloches. Paris: Librarie Bloud & Cie., 1913.

CORBIN, Allain. Les cloches de la terre. Paris: Éditions Albin Michel, 1994.

COSTA, Paulo Ferreira da. Sons do tempo: Usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular. In. O Sino: Voz da Aldeia, Voz de Deus. Revista Sítios e Memórias, Porto,1997.

IPHAN. O Toque dos Sinos e o Ofício de Sineiro em Minas Gerais: tendo como referência as cidades de São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes. Coordenação, Yêda Barbosa. Brasília, DF: Iphan, 2016.

NASCIMENTO, Flávia Brito do. Praça XV do Rio de Janeiro como Patrimônio cultural. História e materialidade em disputa. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.14, 2018, p.297-324.

PRANDI, Reginaldo. Exu de mensageiro a diabo, sincretismo católico e demonização do orixá.   REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 46-63, junho/agosto 2001.


Mobilidade - imobilidade

Viviana Birolli

 Uma residência é para um artista o que um laboratório é para cientistas; um local que incentive a experimentação e permita a criação de novos projetos.

Desde 2015, Echnageur22, em Saint-Laurent des Arbres, convida artistas franceses, japoneses, brasileiros e coreanos para viver e criar juntos em um espaço compartilhado por várias semanas. À medida que os dias passam e eles conhecem o ambiente, as reuniões acontecem, as conexões são feitas, as relações são construídas entre as respectivas culturas dos artistas e a região.

O título “Imobilidade da mobilidade” sugere que o tempo e o espaço da exposição são uma espécie de instantâneo, registrando um momento no processo de exchnage, o fluxo de idéias que é central no projeto Echangeur22.

Os trabalhos em andamento apresentados aqui foram criados como parte da quinta edição da residência da dupla francesa Comma, artista japonesa Shusuke Nishimatsu, artista sul-coreano Sanghee Noh e Ursula Tautz, que vive e trabalha no Brasil.

Os sinos que marcam ritmicamente as memórias da vila (Ursula Tautz) ……….. são tantos pontos de partida para uma série de jornadas imaginárias que, por sua vez, interrogam a cultura popular, o fluxo do tempo … .

Instaladas no Chartreusse durante a duração da exposição, essas obras registram o instante em que o próximo e o distante se reúnem, um processo singular de pesquisa e de criação aberta e móvel.